A maré que extinguiu o sol

Yuri Da Dalt
5 min readDec 23, 2024

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A Grande Onda de Kanagawa (1830 ou 1831), Katsushika Hokusai.

Quando vi aquele pôr do sol, percebi que a vida esconde muitas belezas dos apressados. Parei no mesmo instante. Não queria nunca mais ter que entregar pacotes, frutas, verduras, lanches ou o quer que fosse. Para quê? Desci da bicicleta, parei ao lado de uma singela banca de jornal e comprei um pacote de cigarros Marlboro e um isqueiro dos mais vagabundos. Na minha vida inteira, eu nunca havia fumado um único cigarro; mas assim o fiz, quase me sufocando, e, até agora, não descobri o motivo — tampouco fumei novamente. Simplesmente parecia adequado ao momento.

Eu estava em pé, ao lado da banca, e raios solares faziam de tudo para se esquivar dos altos prédios da cidade e chegar até mim. Me senti bem por terem me aquecido nesse frio do inverno, e por terem me feito alguma companhia. Aquela reconfortante luz queria me guiar para apreciar melhor as coisas que o mundo tem a oferecer — estou certo disso. Prometi a mim mesmo que passaria o resto dos meus dias com um sorriso no rosto e jamais daria atenção a preocupações desnecessárias.

Fiquei estonteado com a delicada cena até que o sol se pôs-se, o que deve ter demorado mais 30 minutos — confesso que perdi a hora —, e assim que a noite caiu adentro, voltei para o hortifruti em que trabalhava. Abri a porta da decadente loja e dei de cara com o Senhor Antônio, mais conhecido como Toninho, que logo me olhou com um semblante de dúvida.

— Meu querido — adorava nos chamar assim —, aconteceu algo? Você esteve fora por mais de uma hora e não atendia ao telefone. Estávamos começando a nos preocupar — disse ele. Ah, Toninho era uma pessoa maravilhosa. Umas das poucas que conheci que verdadeiramente dava a mínima aos outros. Certamente lembra aquele avô que, com o passar dos anos, começa a perder a casca dura e amolece como manteiga fora da geladeira; me pergunto se eles precisam de um pôr de sol como nenhum outro para se tornarem mais afetuosos.

— Toninho, tenho algo a te dizer — comecei, com alguma dor no coração. — Acho que vou dar um tempo com as entregas. Sinto muito por ter que te deixar na mão, logo agora que as vendas melhoraram.

Ele parou. Por um momento, esboçou uma expressão de difícil deciframento: parecia algo como uma música da Bossa Nova repleta de acordes complexos, compassos específicos e inúmeros instrumentos tocados ao mesmo tempo; mas, tal como nas canções de Tom Jobim, as notas eventualmente se complementam e produzem um som demasiadamente agradável. Toninho sorriu.

— Pedrinho, te conheço há mais de dez anos. Você trabalha comigo há pelo menos cinco. Se precisa de tempo, apoio, qualquer coisa… sabe que pode contar comigo — ele disse. Pegou um pano e voltou-se às janelas do estabelecimento. Com a ajuda de álcool 70%, passou a limpar a parte de dentro dos vidros. — Eu não esperava que você passasse a vida inteira fazendo entregas para mim. Quer tirar um tempo para pensar, resolver a vida, é isso?

— Acredito que sim. Quero aproveitar melhor os dias.

— Faça isso enquanto é cedo — ele riu. — Queria eu ter tido esse pensamento na sua idade. Siga em frente, querido. Não esqueça de pegar com Ana Maria o seu pagamento do mês. E obrigado, Pedrinho, será sempre bem-vindo.

Assenti. Não pretendo me esquecer daquele senhorzinho.

Depois de pegar o dinheiro — que, claro, não era muito — , subi em minha bicicleta e segui em direção à orla. Passei por entre os carros, escutei as buzinas, senti o vento frio, cheirei as ocasionais fumaças, vi pessoas distraídas em suas caminhadas, e provei as gotas da chuva. Quando começara a chover? Talvez o distraído fosse eu. Mas não importava, não nesse dia.

A praia continuava a mesma: muita areia e muita água. Mas algo estava diferente. Eu? Também. Além de mim, as ondas haviam mudado. Já não eram como aquelas que via quando criança. Pareciam mais agitadas do que o normal. Estavam sendo perturbadas por alguma coisa. A lua poderia ser a culpada. Mas não quero culpar uma pedra que flutua no espaço há bilhões de anos pelo mal-humor das marés da Terra; o primeiro a ter feito isto devia ser um grande presunçoso. Era noite de lua cheia, e ela brilhava como nunca na história — por vezes, eu precisava desviar o olhar. Estranhamente grandiosa. Foi a primeira vez que percebi isto acontecendo. Olhar o pôr do sol por tanto tempo deve ter feito mal aos meus olhos, pensei.

Poucos banhistas se arriscavam nas águas; pude ver apenas um em uma área relativamente rasa. Um homem de 40 e poucos anos com uma barriga que, claramente, deve ter visto várias doses de álcool nos últimos tempos. Gosto de pensar que era um empresário que tinha acabado de fechar um negócio importante e quis ir à praia relaxar um pouco. Tinha uma família à sua espera e iria para casa com um lindo buquê de flores para a esposa e um videogame de última geração para os filhos. Quando chegasse ao apartamento, seria recebido com abraços e beijos. Todos felizes. Ou algo do tipo.

Ele foi a primeira vítima.

Não demorou muito para que as ondas se intensificassem de forma inacreditável. Em questão de segundos, a água do mar chegou aonde eu estava, perto da calçada. Pude ver, à distância, o homem sendo puxado e engolido pelo violento mar. Barracas se esforçavam para continuar fincadas na areia: sem êxito, também foram tragadas pelas furiosas marés. Os poucos que na areia estavam, corriam para fora da praia. Cerca de metade conseguiu se salvar. Ajudei uma turista estrangeira que cambaleava; duvido que ela pise novamente neste país. A coisa ia piorando rapidamente — a água já chegava facilmente ao asfalto — e achei melhor me afastar, atravessando a rua. Centenas de pássaros vinham em direção à terra firme. Também pareciam estar com medo do mar e procuravam abrigo.

De repente, o vento quis se mostrar mais presente, potencializando os perigos da fatídica noite. A chuva apertava. Era quase como se os elementos naturais estivessem tendo uma fervorosa discussão familiar. Percebi que várias pessoas ao meu lado assistiam às cenas, de longe. Donos de restaurantes com as mãos na cabeça; garçons e garçonetes boquiabertos; empresários e turistas incertos. Diante daquilo tudo, alguns só conseguiam mostrar um sorriso, no mínimo, paradoxal — talvez incrédulos com a repentina força da natureza. E, a cada minuto, mais invasor era o mar (ou seríamos nós os invasores?). Alguns carros eram levemente deslocados, pessoas caíam e eram levadas. Tentei ajudar como pude, mas nessas horas, qualquer erro pode ser fatal. Quando vi que estava brincando com o perigo e que, com um pouco de azar, poderia ser eu o próximo na fila a ser carregado, me pus a me mover com a bicicleta para bem longe. Era melhor deixar isso aos profissionais. Conforme ia adentrando a cidade, as expressões das pessoas saíam de transtornadas, preocupadas, surpresas, para despreocupadas, distraídas, alheias.

Não consigo dormir. Acredito que seja efeito da adrenalina. Você já deve saber que não gosto de culpar a lua, mas, desde que cheguei a minha casa há algumas horas, ela não para de crescer.

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Jornalista formado pela UFJF

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